Convidado por Rui Reininho, o cantor lembrou o herói de Hergé no Porto
A escolha foi aleatória e imperfeita, porque é impossível a qualquer leitor compulsivo escolher o livro que mais revolucionou uma adolescência. Sérgio Godinho hesitou entre "O Crime do Padre Amaro", a estreia literária de Eça de Queirós, que foi também a sua primeira incursão queirosiana, e o romance-viagem de uma geração, "Pela Estrada Fora", de Jack Kerouac, que o amigo Manuel António Pina lhe recomendou numa cumplicidade de liceu, e o empurrou para o estrangeiro. Mas a participação do músico portuense no ciclo "Um Livro, Uma Vida, Um Objecto ou Um Gesto - Conversas e Confissões com Rui Reininho", ao final da tarde de anteontem na Biblioteca Municipal de Almeida Garrett, acabou por fazer-se sob o signo de Hergé, e a pretexto de "Tintim no Templo do Sol". A páginas tantas, a data aproximava-se e já não havia volta a dar-lhe: "Já dizia a Alice que um livro sem imagens não vale nada. E depois o Rui Reininho fez um 'putsch' e eu fui confrontado com o facto de ter dito que o Tintim poderia ser uma boa escolha", explicou Sérgio Godinho a uma plateia recheada de gente com idades compreendidas entre os 7 e os 77.
Durante pouco mais de uma hora, dissecaram-se então as idiossincrasias de Hergé, a ambiguidade de Tintim, a surdez do Professor Tournesol, o fraquinho pelo álcool e a exuberância verbal do Capitão Haddock. Mas a verdadeira vedeta da tarde foi Milou, uma sósia do inseparável companheiro de Tintim, que não parou de correr pelo palco e de distrair o público, para desespero de Sérgio Godinho, que confessou ter "medo de cães" e chegou a sugerir "uma
pistola ou carne envenenada" para acabar de vez com a invasão. "A seguir vem o Capitão Haddock... E este magnífico sarau vai acabar com a Castafiori a interpretar aquela ária do Gounod, o 'Ah, Je Ris'", ironizou.
Embora Tintim fosse o pretexto da conversa, a primeira personagem a receber as atenções do convidado de Rui Reininho foi mesmo o irascível Capitão Haddock, a propósito das garrafas de "whisky" e de vinho branco que repousavam em cima da mesa, convenientemente cobertas por um disfarce negro, para não ferir susceptibilidades comerciais. "Este estaminé faz lembrar a paixão pela botelha do Haddock", observou Sérgio Godinho, que gastou, de resto, o seu direito de antena a defender a tese de que Haddock e Tournesol são desdobramentos humanizantes de um Tintim insuportavelmente imaculado: Haddock pelo lado excessivo, colérico e voluntarista, Tournesol pelo lado falhado que tem na surdez um poderoso alibi. Personagens que, insistiu o músico, "Hergé inventou para poluir Tintim" e o resgatar da sua ambiguidade.
Quanto ao herói propriamente dito, a conversa foi inconclusiva. Até porque Sérgio Godinho se remeteu à sua condição de "curioso": "Não valia a pena vir para aqui com uma comunicação escrita, para depois o Rui contestar a tese, e eu bloquear a resposta e pedir a ajuda do público ou os 50/50". "O Tintim é de uma ambiguidade a todos os níveis. Não tem família, só uma cara redonda com aqueles dois olhos quase nada. O próprio nome significa 'nada de nada'. No fundo, é um espelho de nada, uma página branca onde se vão escrevendo as histórias", sustentou. Quase como o Mickey, sugeriu Rui Reininho: um repórter assexuado e sem família, levemente misógino. "Sim, mas o Mickey tem namorada, e o Tintim não é erotizado", corrigiu o convidado.Georges Rémy, ou Hergé, o homem por trás de Tintin, também não foi poupado à língua viperina dos dois interlocutores. Sérgio Godinho entreteve-se a lembrar as ressonâncias genealógicas entre a vida do autor e as aventuras de Tintim - o pai de Hergé tinha um irmão gémeo, quais Dupond e Dupont, e foi criado por uma condessa de traços castafiorianos -, enquanto Rui Reininho lembrou a sua faceta de coleccionador de arte, aproveitando para comentar que essa queda "lhe deve ter feito bem, porque ele devia ser uma criatura reaccionaríssima".
A sessão terminou não com uma prestação operática da Castafiori, como chegou a insinuar-se, mas com uma catártica demonstração de insultos haddockianos protagonizada pelos dois interlocutores. Na despedida, os dois músicos fizeram um brinde à plateia e Sérgio Godinho voltou a citar Haddock: "Ah, já me sinto mais instruído".
INÊS NADAIS, Público, 07/04/2001
quarta-feira, 29 de abril de 2015
domingo, 26 de abril de 2015
Curtas
Início do conto «A mulher que se portava mal nos aviões», incluído no livro de Luís Graça «A Mulher que Fazia Recados às Putas e Mais Contos Perversos» (edição de autor, 2007):
«O voo 714 para Sydney, da Air Kunilingus, não se esparramou todo no oceano porque não calhou. Ainda não devia ter a hora marcada.»
publicado por António Manuel Venda (blog Floresta do Sul), 08/06/2007
Um bocadinho de "making of", para os mais curiosos:
O número do voo foi inspirado no álbum do Tintim "Voo 714 para Sydney".
A nome da companhia de aviação inspirado na "Air Lingus".
E bastou-me isto para começar a voar nas escrita.
Luís Graça (comentários do post citado) a 10/06/2007
publicado por António Manuel Venda (blog Floresta do Sul), 08/06/2007
Um bocadinho de "making of", para os mais curiosos:
O número do voo foi inspirado no álbum do Tintim "Voo 714 para Sydney".
A nome da companhia de aviação inspirado na "Air Lingus".
E bastou-me isto para começar a voar nas escrita.
Luís Graça (comentários do post citado) a 10/06/2007
quarta-feira, 15 de abril de 2015
Alzazar e Tapioca
O Presidente das Honduras, Mel Zelaya, foi deposto e despachado para a Costa Rica pelo exército, com alívio do Parlamento e do Supremo Tribunal que tinham declarado inconstitucional a consulta popular anunciada pelo Presidente que queria candidatar-se a segundo mandato. Lembrei-me do "Mistério da Orelha Quebrada" resolvido por Tintim na minha infância (graças à imortal tirada do papagaio: "Rodrigo Tortilla, mataste-me!"), que conta peripécias da luta pelo poder na República de S. Teodoro entre o general Alcazar e o general Tapioca. Em criança, essa caricatura pareceu-me convincente. Depois soube que debaixo da farsa havia tragédia e estratagemas do xadrez político mas tudo quanto aprendi sobre a América Latina desde Tintim - de revolucionários, teólogos da libertação, historiadores, políticos, antropólogos, latifundiários, diplomatas - não apagou inteiramente a marca deixada por Alcazar e Tapioca.
O golpe das Honduras, depois de longo intervalo pacífico na região, retoma costume antigo mas com uma diferença radical nas reacções que provoca. Aos 55 anos e já Presidente, Zelaya, rancheiro conservador rico, virou populista de esquerda e fã de Hugo Chávez. Para cativar o povo tomou medidas ruinosas e tornou-se apologista da democracia directa.
Com popularidade caída abaixo de 30% quis ser presidente perpétuo. Obteve com muita coacção alguns milhares de assinaturas a pedir "consulta popular" sobre a limitação do seu mandato, fez imprimir boletins para ela em Caracas e encarregou o chefe de Estado-Maior de garantir a ordem durante a operação. Legalista e apoiado pelas outras instituições políticas do país, o CMGFA recusou o encargo e demitiu-se. No domingo, a tropa foi pôr Zelaya na Costa Rica. Chávez acusou logo a CIA e os Estados Unidos mas o tiro saiu-lhe pela culatra porque Obama condenou o golpe, dando unanimidade à decisão tomada pela Organização dos Estados Americanos, a qual intimou Tegucigalpa a devolver já o poder a Zelaya ou ser expulsa. Este passou pela Assembleia Geral da ONU onde o aclamaram e propôs-se voltar à pátria, acompanhado por alguns Presidentes latino-americanos, mas nas Honduras o Presidente interino disse que o mandaria prender à chegada. A OEA deu mais tempo a Tegucigalpa para obedecer ao ultimato e multiplica-se em contactos para encontrar saída airosa do imbróglio.
Foi efeito do factor Obama. Quem mandou a tropa depor o Presidente demagogo e populista de esquerda que queria mudar a Constituição ilegalmente tinha contado com o apoio dos Estados Unidos ou pelo menos com a sua anuência. Porém o tiro, como o de Chávez, saiu-lhe pela culatra. Washington não só condenou o golpe como suspendeu a ajuda militar (não aplicou sanções porque acha que já há pobreza de mais nas Honduras).
O golpe das Honduras, depois de longo intervalo pacífico na região, retoma costume antigo mas com uma diferença radical nas reacções que provoca. Aos 55 anos e já Presidente, Zelaya, rancheiro conservador rico, virou populista de esquerda e fã de Hugo Chávez. Para cativar o povo tomou medidas ruinosas e tornou-se apologista da democracia directa.
Com popularidade caída abaixo de 30% quis ser presidente perpétuo. Obteve com muita coacção alguns milhares de assinaturas a pedir "consulta popular" sobre a limitação do seu mandato, fez imprimir boletins para ela em Caracas e encarregou o chefe de Estado-Maior de garantir a ordem durante a operação. Legalista e apoiado pelas outras instituições políticas do país, o CMGFA recusou o encargo e demitiu-se. No domingo, a tropa foi pôr Zelaya na Costa Rica. Chávez acusou logo a CIA e os Estados Unidos mas o tiro saiu-lhe pela culatra porque Obama condenou o golpe, dando unanimidade à decisão tomada pela Organização dos Estados Americanos, a qual intimou Tegucigalpa a devolver já o poder a Zelaya ou ser expulsa. Este passou pela Assembleia Geral da ONU onde o aclamaram e propôs-se voltar à pátria, acompanhado por alguns Presidentes latino-americanos, mas nas Honduras o Presidente interino disse que o mandaria prender à chegada. A OEA deu mais tempo a Tegucigalpa para obedecer ao ultimato e multiplica-se em contactos para encontrar saída airosa do imbróglio.
Foi efeito do factor Obama. Quem mandou a tropa depor o Presidente demagogo e populista de esquerda que queria mudar a Constituição ilegalmente tinha contado com o apoio dos Estados Unidos ou pelo menos com a sua anuência. Porém o tiro, como o de Chávez, saiu-lhe pela culatra. Washington não só condenou o golpe como suspendeu a ajuda militar (não aplicou sanções porque acha que já há pobreza de mais nas Honduras).
Perdidos há muito Alcazar e Tapioca, os políticos da zona deixam agora de saber ao certo com que contar dos Estados Unidos.
Se uns ficarem sem papão e outros sem padrinho vão ter de deitar contas novas à vida.
José Cutileiro, Expresso, 04/07/2009
Se uns ficarem sem papão e outros sem padrinho vão ter de deitar contas novas à vida.
José Cutileiro, Expresso, 04/07/2009
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