quarta-feira, 29 de abril de 2015

O Tintim "Poluído" de Sérgio Godinho

Convidado por Rui Reininho, o cantor lembrou o herói de Hergé no Porto

A escolha foi aleatória e imperfeita, porque é impossível a qualquer leitor compulsivo escolher o livro que mais revolucionou uma adolescência. Sérgio Godinho hesitou entre "O Crime do Padre Amaro", a estreia literária de Eça de Queirós, que foi também a sua primeira incursão queirosiana, e o romance-viagem de uma geração, "Pela Estrada Fora", de Jack Kerouac, que o amigo Manuel António Pina lhe recomendou numa cumplicidade de liceu, e o empurrou para o estrangeiro. Mas a participação do músico portuense no ciclo "Um Livro, Uma Vida, Um Objecto ou Um Gesto - Conversas e Confissões com Rui Reininho", ao final da tarde de anteontem na Biblioteca Municipal de Almeida Garrett, acabou por fazer-se sob o signo de Hergé, e a pretexto de "Tintim no Templo do Sol". A páginas tantas, a data aproximava-se e já não havia volta a dar-lhe: "Já dizia a Alice que um livro sem imagens não vale nada. E depois o Rui Reininho fez um 'putsch' e eu fui confrontado com o facto de ter dito que o Tintim poderia ser uma boa escolha", explicou Sérgio Godinho a uma plateia recheada de gente com idades compreendidas entre os 7 e os 77.

Durante pouco mais de uma hora, dissecaram-se então as idiossincrasias de Hergé, a ambiguidade de Tintim, a surdez do Professor Tournesol, o fraquinho pelo álcool e a exuberância verbal do Capitão Haddock. Mas a verdadeira vedeta da tarde foi Milou, uma sósia do inseparável companheiro de Tintim, que não parou de correr pelo palco e de distrair o público, para desespero de Sérgio Godinho, que confessou ter "medo de cães" e chegou a sugerir "uma

pistola ou carne envenenada" para acabar de vez com a invasão. "A seguir vem o Capitão Haddock... E este magnífico sarau vai acabar com a Castafiori a interpretar aquela ária do Gounod, o 'Ah, Je Ris'", ironizou.

Embora Tintim fosse o pretexto da conversa, a primeira personagem a receber as atenções do convidado de Rui Reininho foi mesmo o irascível Capitão Haddock, a propósito das garrafas de "whisky" e de vinho branco que repousavam em cima da mesa, convenientemente cobertas por um disfarce negro, para não ferir susceptibilidades comerciais. "Este estaminé faz lembrar a paixão pela botelha do Haddock", observou Sérgio Godinho, que gastou, de resto, o seu direito de antena a defender a tese de que Haddock e Tournesol são desdobramentos humanizantes de um Tintim insuportavelmente imaculado: Haddock pelo lado excessivo, colérico e voluntarista, Tournesol pelo lado falhado que tem na surdez um poderoso alibi. Personagens que, insistiu o músico, "Hergé inventou para poluir Tintim" e o resgatar da sua ambiguidade.

Quanto ao herói propriamente dito, a conversa foi inconclusiva. Até porque Sérgio Godinho se remeteu à sua condição de "curioso": "Não valia a pena vir para aqui com uma comunicação escrita, para depois o Rui contestar a tese, e eu bloquear a resposta e pedir a ajuda do público ou os 50/50". "O Tintim é de uma ambiguidade a todos os níveis. Não tem família, só uma cara redonda com aqueles dois olhos quase nada. O próprio nome significa 'nada de nada'. No fundo, é um espelho de nada, uma página branca onde se vão escrevendo as histórias", sustentou. Quase como o Mickey, sugeriu Rui Reininho: um repórter assexuado e sem família, levemente misógino. "Sim, mas o Mickey tem namorada, e o Tintim não é erotizado", corrigiu o convidado.Georges Rémy, ou Hergé, o homem por trás de Tintin, também não foi poupado à língua viperina dos dois interlocutores. Sérgio Godinho entreteve-se a lembrar as ressonâncias genealógicas entre a vida do autor e as aventuras de Tintim - o pai de Hergé tinha um irmão gémeo, quais Dupond e Dupont, e foi criado por uma condessa de traços castafiorianos -, enquanto Rui Reininho lembrou a sua faceta de coleccionador de arte, aproveitando para comentar que essa queda "lhe deve ter feito bem, porque ele devia ser uma criatura reaccionaríssima".

A sessão terminou não com uma prestação operática da Castafiori, como chegou a insinuar-se, mas com uma catártica demonstração de insultos haddockianos protagonizada pelos dois interlocutores. Na despedida, os dois músicos fizeram um brinde à plateia e Sérgio Godinho voltou a citar Haddock: "Ah, já me sinto mais instruído".

INÊS NADAIS, Público, 07/04/2001

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