sábado, 20 de junho de 2015

Corta Fitas III

Tintin e os grecotugas

por João Afonso Machado, em 28.10.11
Nem de propósito, Spielberg trouxe Tintin à ribalta nos cinemas. Será a melhor oportunidade para revisitar a obra genial de Hergé, começando por um dos seus álbuns primordiais.

Concretamente de “Tintin no Congo”, lançado em 1931. Está-se a ver… O herói-repórter desbravando a África mais africana, ao ritmo das concepções da época, branco é branco, negro é negro…

Sobrevieram guerras múltiplas, a mundial, e as mais, civis e coloniais. Ficou a obra e a contestação puritana de uns tantos – o texto era xenófobo, urgia remodelá-lo. Assim se procedeu.

A imagem do preto agarrado ao transístor, circulando de bicicleta, enchapelado, ridículo ou caricato, tudo se fez para ser apagada. Nada contra.

Já, porém, mais difícil será ocultar outro cliché. O nosso. Fatalmente o da nossa gente. Onde o transístor deu lugar ao telemóvel. Télélé-télélé.

Tudo porque entre o miserabilismo que vai invadindo a Europa, há dois países que se destacam no consumo desse aparelho. O primeiro é a Grécia; o segundo é Portugal.

Estatisticamente, entre nós, com 1,5 TM per capita.

As conclusões deste dado seguro ficarão a cargo de V. Ex.cias…

Corta-fitas 28/10/2011

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Rui Vieira Nery


Público, 2009

Citação do musicólogo Rui Vieira Nery: "Pôr na pasta [da Cultura] o general Tapioca ou Alcazar vai dar no mesmo".

quarta-feira, 29 de abril de 2015

O Tintim "Poluído" de Sérgio Godinho

Convidado por Rui Reininho, o cantor lembrou o herói de Hergé no Porto

A escolha foi aleatória e imperfeita, porque é impossível a qualquer leitor compulsivo escolher o livro que mais revolucionou uma adolescência. Sérgio Godinho hesitou entre "O Crime do Padre Amaro", a estreia literária de Eça de Queirós, que foi também a sua primeira incursão queirosiana, e o romance-viagem de uma geração, "Pela Estrada Fora", de Jack Kerouac, que o amigo Manuel António Pina lhe recomendou numa cumplicidade de liceu, e o empurrou para o estrangeiro. Mas a participação do músico portuense no ciclo "Um Livro, Uma Vida, Um Objecto ou Um Gesto - Conversas e Confissões com Rui Reininho", ao final da tarde de anteontem na Biblioteca Municipal de Almeida Garrett, acabou por fazer-se sob o signo de Hergé, e a pretexto de "Tintim no Templo do Sol". A páginas tantas, a data aproximava-se e já não havia volta a dar-lhe: "Já dizia a Alice que um livro sem imagens não vale nada. E depois o Rui Reininho fez um 'putsch' e eu fui confrontado com o facto de ter dito que o Tintim poderia ser uma boa escolha", explicou Sérgio Godinho a uma plateia recheada de gente com idades compreendidas entre os 7 e os 77.

Durante pouco mais de uma hora, dissecaram-se então as idiossincrasias de Hergé, a ambiguidade de Tintim, a surdez do Professor Tournesol, o fraquinho pelo álcool e a exuberância verbal do Capitão Haddock. Mas a verdadeira vedeta da tarde foi Milou, uma sósia do inseparável companheiro de Tintim, que não parou de correr pelo palco e de distrair o público, para desespero de Sérgio Godinho, que confessou ter "medo de cães" e chegou a sugerir "uma

pistola ou carne envenenada" para acabar de vez com a invasão. "A seguir vem o Capitão Haddock... E este magnífico sarau vai acabar com a Castafiori a interpretar aquela ária do Gounod, o 'Ah, Je Ris'", ironizou.

Embora Tintim fosse o pretexto da conversa, a primeira personagem a receber as atenções do convidado de Rui Reininho foi mesmo o irascível Capitão Haddock, a propósito das garrafas de "whisky" e de vinho branco que repousavam em cima da mesa, convenientemente cobertas por um disfarce negro, para não ferir susceptibilidades comerciais. "Este estaminé faz lembrar a paixão pela botelha do Haddock", observou Sérgio Godinho, que gastou, de resto, o seu direito de antena a defender a tese de que Haddock e Tournesol são desdobramentos humanizantes de um Tintim insuportavelmente imaculado: Haddock pelo lado excessivo, colérico e voluntarista, Tournesol pelo lado falhado que tem na surdez um poderoso alibi. Personagens que, insistiu o músico, "Hergé inventou para poluir Tintim" e o resgatar da sua ambiguidade.

Quanto ao herói propriamente dito, a conversa foi inconclusiva. Até porque Sérgio Godinho se remeteu à sua condição de "curioso": "Não valia a pena vir para aqui com uma comunicação escrita, para depois o Rui contestar a tese, e eu bloquear a resposta e pedir a ajuda do público ou os 50/50". "O Tintim é de uma ambiguidade a todos os níveis. Não tem família, só uma cara redonda com aqueles dois olhos quase nada. O próprio nome significa 'nada de nada'. No fundo, é um espelho de nada, uma página branca onde se vão escrevendo as histórias", sustentou. Quase como o Mickey, sugeriu Rui Reininho: um repórter assexuado e sem família, levemente misógino. "Sim, mas o Mickey tem namorada, e o Tintim não é erotizado", corrigiu o convidado.Georges Rémy, ou Hergé, o homem por trás de Tintin, também não foi poupado à língua viperina dos dois interlocutores. Sérgio Godinho entreteve-se a lembrar as ressonâncias genealógicas entre a vida do autor e as aventuras de Tintim - o pai de Hergé tinha um irmão gémeo, quais Dupond e Dupont, e foi criado por uma condessa de traços castafiorianos -, enquanto Rui Reininho lembrou a sua faceta de coleccionador de arte, aproveitando para comentar que essa queda "lhe deve ter feito bem, porque ele devia ser uma criatura reaccionaríssima".

A sessão terminou não com uma prestação operática da Castafiori, como chegou a insinuar-se, mas com uma catártica demonstração de insultos haddockianos protagonizada pelos dois interlocutores. Na despedida, os dois músicos fizeram um brinde à plateia e Sérgio Godinho voltou a citar Haddock: "Ah, já me sinto mais instruído".

INÊS NADAIS, Público, 07/04/2001

domingo, 26 de abril de 2015

Curtas


Início do conto «A mulher que se portava mal nos aviões», incluído no livro de Luís Graça «A Mulher que Fazia Recados às Putas e Mais Contos Perversos» (edição de autor, 2007):

«O voo 714 para Sydney, da Air Kunilingus, não se esparramou todo no oceano porque não calhou. Ainda não devia ter a hora marcada.»

publicado por António Manuel Venda (blog Floresta do Sul),  08/06/2007

Um bocadinho de "making of", para os mais curiosos:

O número do voo foi inspirado no álbum do Tintim "Voo 714 para Sydney".

A nome da companhia de aviação inspirado na "Air Lingus".

E bastou-me isto para começar a voar nas escrita.

Luís Graça (comentários do post citado) a 10/06/2007

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Alzazar e Tapioca

O Presidente das Honduras, Mel Zelaya, foi deposto e despachado para a Costa Rica pelo exército, com alívio do Parlamento e do Supremo Tribunal que tinham declarado inconstitucional a consulta popular anunciada pelo Presidente que queria candidatar-se a segundo mandato. Lembrei-me do "Mistério da Orelha Quebrada" resolvido por Tintim na minha infância (graças à imortal tirada do papagaio: "Rodrigo Tortilla, mataste-me!"), que conta peripécias da luta pelo poder na República de S. Teodoro entre o general Alcazar e o general Tapioca. Em criança, essa caricatura pareceu-me convincente. Depois soube que debaixo da farsa havia tragédia e estratagemas do xadrez político mas tudo quanto aprendi sobre a América Latina desde Tintim - de revolucionários, teólogos da libertação, historiadores, políticos, antropólogos, latifundiários, diplomatas - não apagou inteiramente a marca deixada por Alcazar e Tapioca.

O golpe das Honduras, depois de longo intervalo pacífico na região, retoma costume antigo mas com uma diferença radical nas reacções que provoca. Aos 55 anos e já Presidente, Zelaya, rancheiro conservador rico, virou populista de esquerda e fã de Hugo Chávez. Para cativar o povo tomou medidas ruinosas e tornou-se apologista da democracia directa.

Com popularidade caída abaixo de 30% quis ser presidente perpétuo. Obteve com muita coacção alguns milhares de assinaturas a pedir "consulta popular" sobre a limitação do seu mandato, fez imprimir boletins para ela em Caracas e encarregou o chefe de Estado-Maior de garantir a ordem durante a operação. Legalista e apoiado pelas outras instituições políticas do país, o CMGFA recusou o encargo e demitiu-se. No domingo, a tropa foi pôr Zelaya na Costa Rica. Chávez acusou logo a CIA e os Estados Unidos mas o tiro saiu-lhe pela culatra porque Obama condenou o golpe, dando unanimidade à decisão tomada pela Organização dos Estados Americanos, a qual intimou Tegucigalpa a devolver já o poder a Zelaya ou ser expulsa. Este passou pela Assembleia Geral da ONU onde o aclamaram e propôs-se voltar à pátria, acompanhado por alguns Presidentes latino-americanos, mas nas Honduras o Presidente interino disse que o mandaria prender à chegada. A OEA deu mais tempo a Tegucigalpa para obedecer ao ultimato e multiplica-se em contactos para encontrar saída airosa do imbróglio.

Foi efeito do factor Obama. Quem mandou a tropa depor o Presidente demagogo e populista de esquerda que queria mudar a Constituição ilegalmente tinha contado com o apoio dos Estados Unidos ou pelo menos com a sua anuência. Porém o tiro, como o de Chávez, saiu-lhe pela culatra. Washington não só condenou o golpe como suspendeu a ajuda militar (não aplicou sanções porque acha que já há pobreza de mais nas Honduras).

Perdidos há muito Alcazar e Tapioca, os políticos da zona deixam agora de saber ao certo com que contar dos Estados Unidos.

Se uns ficarem sem papão e outros sem padrinho vão ter de deitar contas novas à vida.

José Cutileiro, Expresso, 04/07/2009


terça-feira, 10 de março de 2015

Sildávia e Bordúria

Sildávia e Bordúria

por Corta-fitas, em 10.10.06
Que é feito da Sildávia e da Bordúria, perguntarão os leitores do Corta-Fitas, que costumam estar tão interessados em assuntos internacionais.

Recapitulemos: a Sildávia, reino centro-europeu de onde foi enviado o primeiro voo tripulado até à Lua, é hoje uma próspera república e futuro membro da União Europeia. O rei Ottokar IV foi deposto num golpe militar que (diz-se) teve influência bordura, mas a democracia regressou depressa, o que permitiu negociações frutuosas com Bruxelas e um rápido processo de adesão comunitária. A Sildávia é uma democracia parlamentar com taxas de crescimento económico a rondar os 6%. O seu rendimento per capita ultrapassou recentemente o português. Klow, a capital, tem meio milhão de habitantes e forte sector turístico, baseado na rica gastronomia. Tem atraído deslocalizações industriais do Vale do Ave.

Durante anos de isolamento, a Bordúria viveu um largo período da ditadura de Plekszy-Gladz e só recentemente alcançou a democracia, na chamada revolução azul-da-prússia. A sua selecção nacional quase conseguiu o apuramento para o mundial de futebol, tendo sido eliminada no play-off pela equipa sul-americana de San Theodoros.
Ao contrário do que se temia, Sildávia e Bordúria nunca chegaram a entrar em guerra uma com a outra.

Bem, isto é o pouco que sei sobre o assunto. Será que os leitores têm mais informações?

Corta Fitas, 2006

De Leonardo a 16.01.2007 às 02:44 :
Fui para a europa nas férias de dezembro em 2006. voltei ao Brasil no dia 12 de janeiro de 2007. Visitei a Alemanha, fui as cidades de Berlim e Fussën. Depois, Fui para a Hungria, pois minha irmã queria conhecer Budapeste. Aproveitei que estava por lá, nos Balcãs e dei uma passadinha em Klow.
O Castelo Kropow é realmente lindo.
Uma pequena mudança foi feita na segurança do Castelo: A sala do cetro está aberta a visitantes; pagando 350 Khôrs, é claro, mas valeu a pena. O cetro é lindo, tem cerca de 1 metro de comprimento, todo feito em ouro, com pedras preciosas e o tradicional pelicano, ave símbolo da syldávia, na parte de cima. Definitivamente é a coisa mais linda que ja vi em toda a minha vida.
E so para confirmar, o rei da Syldavia ainda é Muskar XII, agora com 68 anos. Seu filho, príncipe Muskar XIII será seu sucessor. Muskar XII já tem um neto: Príncipe Ottokar V, mas ainda não é rei, afinal só tem 2 anos de idade. comprei lá um livro sobre a história da Syldávia lá em Klow, traduzido para o Inglês.
Se puderem vão para a Syldávia, é um pais lindo e cheio de histórias.

De João Pedro a 11.10.2006 às 01:54 :
Há aí um erro: o actual rei sildavo é Ottokar V, neto do bem-amado Muskar XII. Quanto a Klow,só a conheço dos prospectos turísticos, mas já não tem aquele simpático aspecto de capital provinciana. Parece que os vendedores ambulantes de sumos desapareceram em definitivo, e os prédios em betão são de tal forma que abafaram os típicos minaretes da cidade. Mas a água mineral continua a ser de grande qualidade.
A Bordúria deve estar ainda pior, mas ao menos os indígenas já sabem aparar o bigode como deve ser.

De João Villalobos a 10.10.2006 às 14:57 :
Cartas inéditas de Ottokar IV foram agora descobertas e publicadas por Otto Portnik pelas Edições Pelikan.
A relação secreta de Ottokar com uma cortesã Borduriana tem agitado os mentideros sildavos. Um escândalo, é o que é.

De Luís Aguiar Santos a 10.10.2006 às 14:33 :
Mais uma correcção: Ottokar IV é um rei do passado, um dos grandes monarcas da história da Sildávia. O rei actual, como disse, é Muskar XII.

De Luís Aguiar Santos a 10.10.2006 às 14:30 :
Peço imensa desculpa, mas é impossível a monarquia sildava ter sido derrubada. Deve haver alguma confusão. Vim de Klow na semana passada, onde assisti aos festejos do dia nacional sildavo (São Vladimir) e vi com estes que a terra há-de comer o cortejo de Muskar XII, com o ceptro, do castelo Kropow até ao centro de Klow. No Arte vai passar o espectáculo que houve essa noite no Kursaal, com a presença de S.M.

De Jose Mexia a 10.10.2006 às 12:24 :
Estive de férias na Sildávia no mês passado e não fiquei com muito boa impressão do país. Apesar de se notar em Klow uma certa dinâmica (os fundos estruturais, bem aplicados, fazem maravilhas) o interior é muito pobre e extremamente poluído.

Realmente a gastronomia é excelente, mas é difícil encontrar um restaurante com bom gosto, os hotéis são todos horríveis e a limpeza não é um atributo deste país.

A habitação é cada vez mais desordenada, os arredores de Klow são inacreditáveis com os seus 300.000 habitantes a viverem em torres umas em cima das outras.

Não consegui ir à Bordúria porque os guardas fronteiriços assim como toda a administração pública, estavam em greve.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Corta Fitas

os relevantes serviços de Tintin à Monarquia

por João Afonso Machado, em 11.09.10
 
A anunciada reedição pela ASA de toda a colecção Tintin relembrou-me um texto antigo, publicado já não sei aonde, sobre o monarquismo de Georges Remi (Hergé). Nada de extraordinário, tratando-se de um belga, e algo bem patente no album O Ceptro de Ottokar. Escrito em 1938, logo após a anexação da Áustria pela Alemanha, já de olho no território dos Sudetas e no "Protectorado da Boémia e Morávia", esta conseguida obra de Hergé espelha ainda a ameaça pairante sobre a Polónia.

O imaginário do Autor levou-o a criar dois países rivais: a Sildávia, uma monarquia democrática, e a Bordúria, autocrática e expansionista. A paisagem e o cenário político da Roménia de Carlos II e da Albânia do rei Zog I dão também o seu contributo. Mas, dizem os entendidos, tudo se poderia melhor resumir a um conflito entre a Moldávia e a Bulgária.

Por mero acaso, Tintin detecta a conspiração, através das ramificações em Bruxelas do Zildav Zentral Revolutzmar Komitzet (ZZRK) cujo chefe se chama Mussler (obvia combinação de Mussolini e Hitler). e o plano é simples: trata-se de roubar o Ceptro do medievo rei Ottokar II, símbolo da unidade e continuidade nacional; simultâneamente, de ocupar alguns pontos vitais sildavos e provocar desacatos com os vizinhos borduros, por modo a justificar a invasão das tropas destes. A falta de exibição do ceptro nos festejos de S. Vladimiro, conforme a tradição, pelo reinante Muskar XII produziria um estado de descrédito e de amedrontamento popular que, fatalmente, conduziria á abdicação do monarca.
Tintin viaja para a Sildávia, conhece o Rei que o atropela quando conduz, ele próprio, o seu automóvel, e, de imediato, lhe narra toda a trama. Não duvidando das palavras do repórter, Muskar XII teve oportunidade de as confirmar, pese embora logo após o roubo do ceptro. Este é recuperado por Tintin, o S. Vladimiro foi o costumeiro sucesso, a revolução totalitária fracassara completamente.

Tintin percorre, enfim, as ruas de Klow, a capital, no coche real, delirantemente aplaudido - ele e a Família reinante - e sendo, depois, o homenageado em magnifica recepção no Palácio, só perturbada por mais uma aselhice dos Dupont .

Esperava-o ainda a mercê do grau de Cavaleiro da Ordem do Pelicano de Ouro, a mais alta condecoração sildava. Muito justamente, acrescente-se: Tintin acabara de salvar a Coroa e a democracia, naquele pequeno reino entre os Balcãs e a premonição de Hergé.